Pepe Escobar - O Frankenstein Chinês
Intelectuais do Ocidente enlouquecem com o
Frankenstein Chinês
Pepe Escobar
"O que pode acabar acontecendo em
consequência de um “descolamento” entre China e os EUA é exatamente aquilo no
qual Beijing já vem trabalhando com afinco: o país vem formando parcerias
comerciais com a UE e com todo o hemisfério sul", escreve o jornalista
Pepe Escobar; "Será em breve o caso com a UE, conforme discutido em
Bruxelas na última temporada"
Eternamente dedicados a pintar da China o quadro mais horroroso, os
economistas e intelectuais do mundo ocidental jamais carecem de subterfúgios
que lhes revelem a sua própria ignorância.
A manifestação mais recente é o
postulado de que nós – leia-se intelectuais do mundo ocidental – “somos a
versão moderna do Frankenstein”, cientista da ficção de Mary Shelley que, com
eletrochoques aplicados a um cadáver (China), deu vida a um “monstro
assassino”.
Assim sendo, sejam bem-vindos à
escola sino-frankensteiniana de relações internacionais. Bom, e agora? Seria um
remake em preto e branco com Xi Jinping no papel do monstro? Enfim, nós
– leia-se as melhores esperanças da humanidade – deveríamos “largar de vez o
papel de Frankenstein”.
O autor, no caso, é professor
emérito de economia em Harvard. Ele nem consegue identificar quem criou esse
Frankenstein, se foi a China ou o próprio Ocidente. Isso mostra bem às claras
quais são os padrões acadêmicos de Harvard.
Mas vamos comparar isto que acaba de
se expor com o que estava sendo discutido num simpósio sobre a guerra comercial
realizado na Universidade de Renmin em Beijing no último sábado.
Os intelectuais chineses estavam
tentando enquadrar o atual deslocamento geopolítico provocado pela guerra
comercial do governo Trump – sem lhe dar o nome que lhe cabe: um ardil
frankensteiniano.
Li Xiangyang, diretor do Instituto
Nacional para Estratégia Internacional, que é um núcleo (think tank) da
Academia Chinesa de Ciências Sociais, deixou claro haver “uma grande
possibilidade” de a China se descolar economicamente dos EUA, considerando que
“a meta maior deles (EUA) é conter a ascensão da China... Trata-se de um jogo
de vida ou morte” para os EUA.
Descolamento
Assumindo que de fato aconteça, esse
descolamento bem poderia ser percebido como uma “chantagem estratégica” imposta
pelo governo Trump. Mas o que o governo Trump quer não é exatamente o que o establishment
estadunidense quer – conforme demonstrado pela carta aberta a Trump
assinada por vários acadêmicos, especialistas em política externa e líderes
empresariais preocupados com a possibilidade de esse “descolamento” entre China
e a economia global – como se Washington fosse capaz de disparar esse petardo!
– vir a dar um contragolpe descomunal.
O que pode acabar acontecendo em
consequência de um “descolamento” entre China e os EUA é exatamente aquilo no
qual Beijing já vem trabalhando com afinco: o país vem formando parcerias
comerciais com a UE e com todo o hemisfério sul.
Segundo Li, isso vai fazer com que
as lideranças chinesas ampliem e aprofundem cada vez mais os acessos comerciais
junto aos seus parceiros. Será em breve o caso com a UE, conforme discutido em
Bruxelas na última temporada.
Sun Jie, pesquisador do Instituto de
Economia e Política Mundial da Academia Chinesa de Ciências Sociais, disse que
o aprofundamento das parcerias com a Associação das Nações do Sudeste Asiático
(Asean) será fundamental no caso de ocorrer mesmo esse descolamento.
Já Liu Qing, professor de economia
da Universidade de Renmin, destacou a necessidade de que se faça a melhor
gestão possível das relações internacionais, lidando com todos desde a UE até o
Sul Global, para evitar que suas empresas substituam as chinesas em certas
cadeias de suprimento global.
E Wang Xiaosong, professor de
economia da Universidade de Renmin, enfatizou ser de suma importância que a
China tenha uma abordagem muito bem orquestrada para lidar com Washington.
Tudo em torno do Cinturão, da Rota
Alguns dos intelectuais mais
otimistas no mundo ocidental prefeririam caracterizar o que está acontecendo
como um vibrante debate entre os que propõem barreiras e equilíbrio
extraterritorial (offshore balance) e os que propõem hegemonia liberal.
A bem da verdade, trata-se mesmo de “apagar incêndio”.
Dentre os intelectuais do Ocidente
impressionados com a figura frankensteiniana, é praticamente impossível
encontrar outra voz da razão que se equipare à de Martin Jacques, atualmente
professor titular da Universidade de Cambridge. “Quando a China mandar no
mundo” (When China Rules the World), um calhamaço que ele publicou há 10
anos, ainda se destaca em meio a um deserto editorial de obras, quase todas
enfadonhas, publicadas no Ocidente pelos ditos “especialistas” em China.
Jacques compreendeu que agora tudo
são as Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (também
conhecida como BRI, sigla na língua inglesa): “A BRI pode oferecer outro tipo
de mundo, outro conjunto de valores, outro conjunto de imperativos, outra forma
de organização, outro conjunto de instituições, outro conjunto de
relacionamentos.”
E segue dizendo: “A Iniciativa
oferece uma alternativa à ordem internacional vigente. Essa ordem que aí está
foi elaborada pelo mundo rico e ainda o privilegia, a esse mundo que representa
apenas 15% da população sobre a face da terra. Por outro lado, a Iniciativa Um
Cinturão, Uma Rota se volta para ao menos dois terços da população mundial.
Trata-se algo de extrema importância para este momento da história.”
A bem da verdade, já estamos
adentrando um cenário 2.0 da Iniciativa, definido pelo Ministro de Relações
Exteriores Wang Yi como uma esmerada passagem do “traço à mão livre” para
“pinceladas delicadas”.
No fórum da Iniciativa Um Cinturão,
Uma Rota na última temporada em Beijing, 131 países estavam representados,
engajados em projetos devidamente correlatos. A Iniciativa está se associando a
29 organizações internacionais, desde o Banco Mundial até a APEC, a Cooperação
Econômica da Ásia e do Pacífico.
Afora o fato de que a Iniciativa Um
Cinturão, Uma Rota está agora configurada como vasta infraestrutura própria e
projeto de desenvolvimento do comércio eurasiano que se estende até a África e
a América Latina, Beijing vem enfatizando tratar-se também de uma multifacetada
marca que abrange as relações comerciais bilaterais, a cooperação Sul-Sul e as
metas da ONU para o desenvolvimento sustentável.
O comércio da China com os países da
Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota atingiu 617,5 bilhões no primeiro semestre de
2019, subindo 9,7% a cada ano e ultrapassando a taxa de crescimento do comércio
total daquele país.
O estudioso chinês Wang Jisi tinha
razão desde o início ao destacar a Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota como
“necessidade estratégica” para se contrapor à ora extinta política “Pivô para a
Ásia” de Barack Obama.
Então, já é hora de os intelectuais
do mundo ocidental entrarem numa: do jeito que está, a Iniciativa Um Cinturão,
Uma Rota é o novo Frankenstein.
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